Imagem gerada por IA
A cena se repete em muitos rincões do sul do Brasil: uma criança pequena arruma seu lenço diante do espelho enquanto o avô calça, com cuidado, suas botas de couro curtido. É noite de fandango no CTG local, e a família toda se prepara com entusiasmo. Esse ritual simples, mas carregado de significado, revela o papel profundo que os Centros de Tradições Gaúchas exercem nas comunidades — não apenas como locais de festa, mas como verdadeiros espaços de pertencimento, educação e passagem de valores entre gerações.
Os CTGs — presentes em praticamente todos os municípios do Rio Grande do Sul e espalhados por outros estados — são muito mais do que espaços culturais. Eles funcionam como pontos de encontro onde a comunidade se reconhece, compartilha histórias e fortalece laços. A palavra “comunidade”, nesse contexto, ganha um peso especial: ela não é apenas uma junção de pessoas com um endereço em comum, mas sim um coletivo que se forma e se transforma a partir das tradições que compartilha.
No CTG, o jovem aprende desde cedo a respeitar a hierarquia, a trabalhar em grupo, a valorizar o esforço e a disciplina. Em paralelo, os mais velhos encontram ali um espaço de continuidade e acolhimento, onde podem transmitir conhecimentos que muitas vezes não cabem nos livros.
O símbolo maior dessa convivência é, sem dúvida, o chimarrão. Ao redor da cuia, as gerações se encontram sem pressa. Um piá escuta, atento, causos do tempo da Revolução de 1923. Uma prenda mais jovem observa como se prepara o mate “sem lavar a erva”. Nesse gesto cotidiano, constrói-se uma ponte invisível entre o passado e o presente.
É esse tipo de convivência que fortalece a identidade cultural do povo gaúcho. Dentro de um CTG, a tradição não é uma peça de museu, mas algo vivo, encenado em danças, indumentárias, declamações e até mesmo nos detalhes da lida campeira simulada em rodeios.
Muitas escolas reconhecem o valor pedagógico dos CTGs e estabelecem parcerias. Crianças e adolescentes que participam de invernadas artísticas aprendem sobre música, dança e literatura, mas também desenvolvem autoestima, responsabilidade e senso de coletividade. Para muitos jovens de cidades pequenas, a participação em concursos culturais, como o Enart ou o Juvenart, é a primeira oportunidade de viajar, representar seu município e perceber que fazem parte de algo maior.
Além disso, em tempos de tecnologia e hiperconectividade, os CTGs oferecem uma experiência mais tátil e afetiva. Vestir a pilcha, ensaiar a chula, declamar um poema de Jayme Caetano Braun exige dedicação e presença real. Isso não apenas desenvolve habilidades, como também propicia vínculos humanos profundos, que muitas vezes extrapolam os limites do galpão.
Embora tradicionalmente a figura masculina seja muito exaltada nas representações gaúchas, os CTGs vêm abrindo cada vez mais espaço para as mulheres assumirem protagonismo. Hoje, muitas prendas lideram projetos culturais, coordenam invernadas e se destacam como estudiosas da tradição. A gestão de CTGs também está se tornando mais diversa, com famílias inteiras se envolvendo nas decisões e no dia a dia da entidade.
Esse movimento é fundamental para atualizar as tradições sem perder suas raízes. A comunidade se renova quando permite novas interpretações da identidade gaúcha, sem abrir mão do respeito pelos valores originais: coragem, hospitalidade, simplicidade e honra.
Além da dança e da música, o CTG também é espaço de solidariedade prática. Em muitos municípios, é no galpão que se organizam campanhas de doações, mutirões de ajuda a famílias em situação de vulnerabilidade e ações sociais em datas comemorativas. Um exemplo tocante são os almoços beneficentes ou galinhadas feitas em prol de um integrante da comunidade que adoeceu ou sofreu alguma perda.
Essas ações reforçam o papel do CTG como núcleo afetivo. A comunidade se reconhece ali não apenas nas festas, mas principalmente nos momentos de dificuldade, quando é preciso unir forças.
Em tempos de globalização e crises identitárias, os Centros de Tradições Gaúchas oferecem uma âncora segura. Não se trata de saudosismo ou de resistência ao novo, mas de usar a tradição como ferramenta de acolhimento e transformação. A criança tímida que começa dançando no fundo da invernada pode virar, anos depois, a coordenadora cultural do grupo. O senhor que antes só observava, começa a ensinar a fazer trança de crina para adornar arreios. O ciclo se renova porque há espaço, tempo e escuta.
Nas cidades pequenas, o CTG é, muitas vezes, o único espaço cultural ativo. Em áreas urbanas maiores, ele serve como reduto de memória e identidade para aqueles que migraram e querem manter vivas as raízes. Em todos os casos, o que permanece é a força da comunidade que se constrói em torno do fogo de chão.
Quando um avô ensina seu neto a encilhar um cavalo, quando uma mãe costura a pilcha da filha para o próximo sarau, quando jovens ensaiam coreografias que seus pais também dançaram anos atrás, é a tradição que se estende — não como algo engessado, mas como uma herança viva, que pulsa em cada gesto.
No fim das contas, o CTG é isso: um lugar onde a memória se dança, se canta e se compartilha. Onde a comunidade é, antes de tudo, uma grande roda de chimarrão, com espaço para todos, de todas as idades.
Ambrosia – doce feito com leite, ovos e açúcar, cozido lentamente. Você lembra da primeira…
Cambará do Sul: por que os cânions do RS estão no radar dos aventureiros A…
Cuca gaúcha: doce clássico que conquista gerações Você lembra da última vez que sentiu o…
Festivais e Rodeios: Celebrações que exaltam a tradição Gaúcha Poucas manifestações culturais conseguem unir identidade,…
Vale dos Vinhedos: o paraíso do vinho brasileiro que parece a Toscana Quem percorre as…
Feijão tropeiro ao estilo gaúcho: veja como preparar Saboroso, rústico e cheio de história, o…
This website uses cookies.